“Precisamos aprender não apenas a conviver com a diversidade (...),
mas a desejá-la, promovê-la e respeitá-la como uma benção, um prêmio da Natureza”
Ações educativas sem julgamentos preconceituosos,
que promovam o respeito ao "diferente" e ajudem na formação de
cidadãos tolerantes são possíveis e devem ser colocadas em prática
Na vida cotidiana, os processos de comparação e
discriminação estão sempre presentes. Desde a infância aprendemos a comparar e
a separar o grande do pequeno, o bonito do feio, o certo do errado, o normal do
anormal. Mesmo o sábio poeta Fernando Pessoa já tendo dito que "nada
sabemos da alma, senão da nossa; as dos outros são olhares, são gestos, são
palavras, com a suposição de qualquer semelhança [ou diferença] no fundo",
julgamentos discriminatórios fazem parte do dia-a-dia de crianças e adultos.
"Primeiramente, é preciso aceitar que a
discriminação, qualquer que seja ela, é aprendida. Ninguém nasce supondo que é
'normal', melhor ou inferior em relação a outros indivíduos", afirma Zilda
Del Prette, professora do Programa
de Pós-Graduação em Educação Especial e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Desta forma, "é importante
que na escola, principal fonte formadora de cidadãos, as crianças sejam
ensinadas a respeitar as diferenças e a superar preconceitos que levam a
julgamentos errados e a conflitos dentro e fora da sala de aula", continua
ela.
Uma atenção especial a essa tarefa da escola é
fundamental, pois, inadvertidamente, pais e professores podem permitir a reprodução
da discriminação e até acentuá-la, tendo em vista que há uma forte tendência de
organizarmos nossas ideias e práticas a partir daquilo que é comum, igual e
homogêneo. "Estamos todos habituados a buscar as semelhanças e a
valorizá-las, muito mais do que as diferenças, mesmo elas sendo tão presentes.
A própria Ciência se constrói sobre a busca da regularidade, da estabilidade e,
embora este esforço seja necessário, por vezes acaba ficando obscurecida a
importância da diversidade e da variação, inclusive como forma de garantir a
continuidade da vida em um mundo que muda constantemente", destaca Ana
Lúcia Cortegoso, também professora do Programa de Pós-Graduação em Educação
Especial da UFSCar (PPGEEs).
A história recente da Educação e, em particular, da
Educação Especial, mostra que há diferentes dispositivos para fomentar o
desenvolvimento de práticas inclusivas de atenção à diversidade. Na base de
todos eles está uma política educacional que estabeleça diretrizes, metas e
objetivos voltados para a inclusão, além de garantir as condições mínimas para
o alcance desses objetivos e metas.
De início, é necessário desenvolver uma cultura de
inclusão e de respeito à diversidade - dentro e fora da escola. Para realmente
ocorrer, a cultura de inclusão requer o envolvimento da sociedade organizada e
do Estado. Isto, segundo Zilda Del Prette, vem ocorrendo no nosso país há
alguns anos, ainda que de maneira lenta. "Pode-se dizer que os recursos
legais, como itens de nossa Constituição sobre cidadania, ou leis
complementares, como os chamados Estatutos, por exemplo o da Criança e
Adolescente, dão as condições necessárias ao desenvolvimento do trabalho, mas
não suficientes para a construção de uma sociedade verdadeiramente
inclusiva", considera ela.
De acordo com o professor Almir Del Prette, também
do PPGEEs e PPGPsi, o que é posto na lei deve ser seguido por uma ação
estratégica, que deve começar na família e se estender para a escola em todos
os níveis, em um movimento social amplo que agregue os demais setores da
comunidade. "É possível fazer um paralelo com o processo de vacinação que
começou no País há muito tempo. Inicialmente, se fez uso da lei e,
posteriormente, utilizou-se, de forma bem sucedida, o processo educativo. Hoje,
é muito raro encontrar algum pai que se oponha à vacinação de seu filho e, mais
ainda, as mães buscam esse recurso como direito legítimo", exemplifica o
pesquisador.
Na escola particularmente, que é para onde
convergem as atenções quando se fala em práticas inclusivas, além das condições
materiais - melhoria das salas de aula, materiais pedagógicos adequados,
ampliação e melhor remuneração do quadro docente -, os pesquisadores entendem
como fundamental a qualidade da atuação do professor, não apenas para oferecer
um modelo de respeito e de valorização das diferenças entre os alunos, mas
também como agente mediador de interações sociais educativas e inclusivas na
sala de aula. "Em relação ao professor, a primeira coisa é ele próprio não
discriminar o aluno 'diferente', seja em termos de rendimento, de estética ou
de habilidades. A segunda é colocar esse tópico na pauta de seus objetivos de
ensino e criar condições diárias para envolver os alunos no processo de
aprendizagem", acredita Zilda Del Prette.
Condições de aprendizagem
Em princípio, como enfatiza a pesquisadora Ana
Lúcia Cortegoso, é necessário entender que não há alunos normais, há apenas
alunos: os tipos e graus de necessidade que cada indivíduo tem para aprender
são diferentes e, mais do que dividi-los em categorias "x" e
"y", é necessário verificar, sempre, quais são os limites do próprio
professor para lidar com tal diversidade. "A partir daí, é possível
equilibrar a demanda com diferentes números de alunos em classe, para que haja
diferenciação de programação e de conteúdo naquilo que não pode ser aprendido
da mesma forma por todos", afirma Cortegoso.
Ou seja, não há nada mais injusto do que tratar
todo mundo igualmente, se as necessidades são diferentes. A distribuição da atenção
precisa ser qualitativamente equilibrada. O professor deve, inclusive, contar
com os alunos que precisam menos de sua atenção, para agirem como tutores.
"Esses alunos se sentirão valorizados ao poderem colaborar e, certamente,
aprenderão muito com isso, inclusive no sentido de se tornarem melhores
cidadãos. E, na verdade, todos poderão, de algum modo e dentro de seus limites
e potencialidades, ajudarem-se mutuamente, o que faz com que não existam
'favores', mas trocas justas", explica Cortegoso. A pesquisadora destaca
que na instituição da "tutoria" é necessário se garantir que ela
esteja ao alcance de todos, e não se institucionalize na forma de
"ajudantes do professor".
O planejamento de atividades feito a partir do
reconhecimento dos objetivos a serem alcançados e das peculiaridades dos
alunos, aliado à disposição de verificar o resultado das atividades são também
relevantes, quando se deseja criar reais condições de aprendizagem numa
perspectiva inclusiva. É importante que os objetivos sejam encarados não como
"conteúdos" a serem transmitidos, mas como competências a serem
promovidas nos aprendizes, e que se busquem alternativas quando os resultados
do processo não forem satisfatórios.
Paralelamente a isso, o professor pode colocar em
prática atividades acadêmicas lúdicas que levem as crianças a perceberem que
seus próprios amigos são diferentes em vários aspectos, que ela própria é
diferente em muitas de suas características e que, no entanto, todos podem
conviver e extrair o melhor dessas diferenças. "O professor também deve
criar condições de interação entre as crianças, estabelecendo tarefas em duplas
ou em grupos. Há uma infinidade de atividades, jogos, brincadeiras que
facilitam a coesão entre as crianças. São atividades estruturadas que visam
promover as habilidades da convivência social, que facilitam a inclusão e que,
portanto, devem ser exploradas em associação com os conteúdos acadêmicos",
afirma Zilda Del Prette.
O docente deve também valorizar - sem alarde - as
ações daqueles que apresentam respeito e aproximação ao "diferente".
"Temos visto que, quando o professor cria esse 'clima' na sala de aula, as
crianças naturalmente tendem a aceitar o outro e colaborar para que ele se
sinta bem", explica Del Prette. Nesse sentido, ele exemplifica: se uma
criança está falando algo e as demais estão conversando ao mesmo tempo, o
professor deve pedir a atenção de todos. Se o professor fizer isso em relação a
qualquer aluno da sala, estará promovendo o respeito para com o próximo; quando
o fizer em relação à criança com necessidades especiais estará, além disso,
mostrando que ela tem o mesmo direito dos demais. "Por outro lado, se
todos estão ouvindo e prestando atenção ao que diz ou tenta dizer uma criança
com necessidades especiais, o professor precisa valorizar as duas coisas: a sua
fala e a atenção dos outros."
Apesar dessas práticas pontuais e diárias serem
fundamentais quando se pensa em cultura escolar e diversidade, os
pesquisadores, de modo geral, acreditam que mais do que construir atividades
específicas para integrar e respeitar a diversidade, é fundamental que cada
prática educativa esteja coerentemente voltada para a inclusão de todos. Ou
seja, não são apenas os alunos ditos "especiais" que precisam ser
incluídos, mas todos os alunos de uma turma. E nesse ponto, uma relação
saudável e respeitosa com as famílias, buscando nelas uma complementação e a
troca de informações e ideias, pode ser uma condição muito propícia para a
criação de ambientes de aprendizagem capazes de atender à diversidade.
"Com relação aos pais, instigados pela escola
devem propor grupos de estudo, atividades integradas, selecionar e trocar
leituras, filmes e outros recursos educativos pró-inclusivos a serem utilizados
com os filhos. Os pais precisam também compreender que a maneira como se
comportam deve ser coerente com o próprio discurso sobre tolerância e respeito
à diversidade", enfatiza Zilda Del Prette.
Educação inclusiva e cidadania
As práticas inclusivas - quando bem conduzidas e
efetivas - cumprem o importante papel de preparar todas as crianças, desde a
mais tenra infância (e também os adultos!) para uma atuação cidadã, de respeito
e tolerância às diferenças. "Penso que ela [a educação inclusiva] é parte
do processo de construção de uma nova cultura escolar comprometida com uma
sociedade mais justa para todos", diz Del Prette.
Na mesma direção, Ana Cortegoso acredita que
"o papel da Educação é formar pessoas como cidadãos capazes de produzir
bem-estar para si e para aqueles que convivem consigo. Precisamos aprender não
apenas a conviver com a diversidade - como se fosse uma deferência nossa para
com os mais diferentes -, mas a desejá-la, promovê-la e respeitá-la como uma
benção, um prêmio da Natureza".
Reportagem realizada por Click
Ciencia
Nenhum comentário:
Postar um comentário