O uso de combinados e a promoção da cultura de paz

 
No dia a dia das escolas, é muito comum que os profissionais da educação manifestem várias queixas, como: "não consigo dar nenhuma aula sem perder muito tempo resolvendo questões de indisciplina", "os alunos conversam demais", "os alunos são agressivos, xingam-se um ao outro o tempo todo", "os alunos não fazem as tarefas", "os alunos depredam a escola", "os alunos não trazem o material pedido, não fazem trabalhos". Por outro lado, a equipe de direção das escolas também costuma fazer queixas com relação ao corpo docente, como faltas de professores, atrasos, não cumprimento de prazos, aulas não planejadas ou de má qualidade, falta de respeito às regras coletivas da instituição. E para completar o quadro, os professores muitas vezes manifestam insatisfação com relação ao trabalho dos seus líderes, reclamando da ausência, de falta de "pulso firme" ou de excesso de autoritarismo.

Tendo em vista esta realidade, o uso de combinados (pactos de convivência ou acordos coletivos) tem sido uma das soluções mais destacadas pelo Projeto Não-Violência para suprir as necessidades mais urgentes das escolas. Na literatura encontramos o livro Tá Combinado – Construindo um pacto de convivência na escola, de Feizi Milani, que constitui uma obra de referência no assunto e tem sido o nosso guia para reflexão e implantação destes acordos coletivos.

Sabemos que as escolas atualmente encontram muitas dificuldades de estabelecer um padrão de autoridade com relação ao cumprimento das normas. A tradição do autoritarismo presente na escola antiga e muito acentuada no regime militar, ainda permanece nas instituições de ensino atuais, ainda que de forma mais amena. A visão autoritária tende a utilizar o medo como forma de manter o controle. As regras são impostas aos alunos, que precisam obedecer cegamente. Quando a obediência não ocorre, estabelece-se uma punição. E não há praticamente diferenciação entre crianças e adolescentes, alunos do ensino fundamental ou do ensino médio, no sentido de que todos devem acatar as normas sem questionamentos.


Porém, o que percebemos é que esta autoridade baseada no medo não tem se sustentado na realidade atual. As crianças e adolescentes da nova geração estão recebendo um tipo de educação muitos menos rígida do que a educação militar dos anos da ditadura. Em função disso, não é possível simplesmente querer controlar os alunos através do medo, mas sim encontrar alternativas para lidar com estas crianças de maneira mais efetiva.

A idéia de fazer combinados entra como uma solução não repressiva para o problema da indisciplina e da crise de autoridade do professor. Sua proposta fundamental é construir coletivamente os "acordos" necessários para criar e manter um convívio de respeito e solidariedade entre profissionais, alunos e pais e, com isso, prevenir os problemas de violência e indisciplina na escola.


O pressuposto que fundamenta o uso de combinados é muito simples: quando participamos da construção das regras que regem um determinado ambiente temos muito mais facilidade de aceitar e cumprir o que é decidido. Quando recebemos as regras prontas, quando alguém nos impõe uma determinada norma, automaticamente surge um sentimento de rebeldia, de revolta. Por exemplo: se o (a) seu (sua) companheiro (a) se dirigir a você de forma imperativa, falando o seguinte "eu lavo a louça e você passa a roupa" – como é sua tendência de reagir? Normalmente sentimos que o outro está "dando ordens" e nos sentimos desrespeitados. Porém, se seu (sua) companheiro (a) propor uma conversa do tipo "vamos combinar uma divisão de tarefas domésticas em casa" – a reação não tende a ser diferente? Quando sentimos que nossa opinião é respeitada e podemos participar das decisões, tendemos a acolher e respeitar mais efetivamente as regras de convivência. Neste exemplo, através da conversa, o casal pode até chegar à mesma decisão que seria proposta de forma autoritária, porém independentemente do resultado é muito mais importante o processo, a forma como as coisas foram combinadas.

Assim, dentro de uma escola, os alunos certamente se sentirão mais respeitados e ouvidos se puderem participar da construção das regras de convivência em sala de aula. É claro que cada faixa etária possui um nível de maturidade e a capacidade de participação vai aumentando na medida em que o aluno fica mais velho. Crianças menores podem participar da construção de regras escolhendo frases ou figuras representando comportamentos que são importantes para um bom convívio em sala de aula. A partir da 5a série, os alunos podem escrever suas próprias frases e, com a ajuda do professor, construir um combinado próprio para a sala de aula. Adolescentes a partir da 8a série podem construir combinados mais específicos, participar de algumas decisões da escola, atuar em grêmios e projetos extra classe.


Fazer combinados não significa apenas captar a opinião dos alunos e construir um cartaz bonito com as responsabilidades do grupo. Significa também uma mudança de postura por parte do educador. O professor precisa abandonar os velhos métodos autoritários e se propor a construir uma relação afetiva com sua turma. Precisa estar disposto a ouvir, a respeitar cada criança, a conquistar a confiança da turma. Precisa estabelecer limites justos, que ajudem a criança a se desenvolver moralmente, em vez de causar apenas humilhação e revolta. Agindo assim, normalmente o professor leva mais tempo para conquistar o respeito da turma, porém, quando essa conquista ocorre ela é permanente, pois o professor atinge uma autoridade que não se baseia apenas no medo, mas numa verdadeira relação de confiança e admiração pelo mestre. Quando educamos as crianças para se comportar bem em função do medo de receber punição, corremos o risco de formar pessoas capazes de obedecer quando são vigiadas, mas que agem de forma anti-ética quando "ninguém está olhando". Os combinados ajudam a criar uma cidadania autêntica e não apenas um jogo de hipocrisia social onde o que vale é a aparência de bondade.

A prática de construir combinados tem sido realizada por diversos educadores e instituições de ensino, com sucesso. As teorias mais recentes sobre educação costumam apoiar esta idéia, defendendo um panorama mais democrático em sala de aula. Como não podemos voltar no tempo e ao mesmo tempo precisamos mudar para garantir uma relação de respeito entre educadores e educandos, acreditamos que investir na construção de combinados e lutar para mudar a concepção vigente sobre autoridade são condições essenciais para o fortalecimento da cultura da paz - tão almejada - na sociedade.

Construção de Combinados: relato de uma experiência

Os trabalhos iniciaram no Colégio Estadual Cecília Meireles no segundo semestre de 2005. Inicialmente um pequeno grupo de lideranças da escola estudou o livro 'Tá Combinado', recebendo orientação da equipe do PNV. No início do ano de 2006, durante a semana pedagógica – período de planejamento e capacitação dos professores - construímos o pacto de convivência dos profissionais da escola, um combinado voltado para ajudar a manter um ambiente de convívio pacífico entre os adultos da instituição.

Quando as aulas iniciaram, a primeira semana foi utilizada para construir os pactos de convivência entre os alunos. Ao invés dos professores iniciarem com suas disciplinas e conteúdos específicos, dedicaram-se a construir um bom vínculo com os alunos e um combinado que pudesse balizar a relação não só entre os alunos mas também entre alunos e professores. Cada professor representante coordenou uma série de atividades destinadas a sensibilizar os alunos para a importância dos combinados, estimular os alunos a darem sua opinião e construir um cartaz com direitos e deveres de estudantes e professores.


Apesar da construção de combinados ter sido efetuada de maneira relativamente tranqüila, sabemos que nenhum trabalho novo na área de educação costuma trazer resultados imediatos, pois naturalmente surgem problemas e dificuldades... Os alunos não estavam acostumados a opinar, por isso receberam a idéia sem tanto comprometimento e acabaram não aproveitando o espaço que tiveram. Os professores, por sua vez, acostumados a uma cultura de entregar tudo pronto aos alunos, tiveram dificuldade de manter as salas organizadas durante a construção e, mais tarde, também tiveram problemas para estimular os alunos a cumprirem os combinados. Muitos professores esqueceram ou deixaram de lado o acordo coletivo e continuaram impondo as regras como sempre fizeram... Em compensação, muitos professores também relataram que conseguiram trabalhar melhor com suas turmas, que o convívio e o respeito melhoraram.

Tão importante quando a construção do pacto é também a manutenção do pacto, ou seja, o trabalho diário com o combinado para que ele não seja apenas mais um cartaz grudado na parede, mas uma autêntica expressão das necessidades dos alunos e professores. Assim surgiu o "espaço permanente de diálogo", uma reunião quinzenal realizada pelos profissionais com o intuito de discutir as dificuldades de manutenção do pacto, compartilhar experiências e casos de sucesso. A criação desse espaço foi excelente para a integração da escola, pois os profissionais tornaram-se mais unidos, mais aptos e seguros para lidar com as dificuldades do cotidiano escolar, mais cientes do seu papel de educador e mais comprometidos com a escola.


Os conselhos de classe no Colégio Cecília Meireles também mudaram. Os critérios estabelecidos pelos combinados são usados como forma de avaliar profissionais e alunos. Tanto os professores avaliam suas turmas como as turmas avaliam os professores. E todos também realizam a auto-avaliação. As avaliações não têm o objetivo de gerar alguma nota ou conceito, mas de promover diretrizes para mudanças, para melhorar os comportamentos e tornar o convívio melhor.

Se a punição é algo que temos que reduzir numa cultura baseada no diálogo e no respeito, a recompensa, ao contrário, deve ser estimulada. Desta forma a escola passou a utilizar mais o reconhecimento como forma de estimular bons comportamentos. Alunos são reconhecidos não apenas pela nota, mas por serem participativos, bons ouvintes, respeitosos, criativos e por pequenas melhoras no comportamento. Os profissionais também são reconhecidos pelo seu trabalho, pela relação positiva que têm com os alunos, pelo seu respeito aos combinados. Isso contribui para um aperfeiçoamento crescente da prática pedagógica e para o comprometimento cada vez maior com a escola.

Enfim, com este trabalho, percebemos que os combinados constituem uma forma muito interessante de promover o espírito coletivo, fazendo com que a linguagem dos profissionais da escola seja mais uniforme – não no sentido de padronizada - mas de sintonizada. Ou seja, cada vez mais os profissionais tendem a compartilhar e praticar os mesmos princípios, potencializando o efeito da educação na vida dos alunos. Esperamos que os educadores possam cada vez mais compreender que sem uma mudança na maneira como pensamos a educação, a prática dificilmente se consolida, pois precisamos romper com as velhas amarras do tradicionalismo e buscar novos modelos para construir uma educação que tenha sentido e significado e que seja transformadora na vida dos alunos e gratificante para os profissionais.

Fonte: Projeto Não-Violência

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