O filho como cabo de guerra: reflexões sobre divórcio e alienação parental

São muitas as responsabilidades dos pais na vida conjugal. A manutenção da qualidade do relacionamento afetivo-sexual, o provimento do sustento da casa e a educação dos filhos são alguns desafios que podem desencadear crises ou mesmo o divórcio. Neste contexto, comumente a criança é tão disputada quanto os bens do casal, que maneja estratégias que podem até ultrapassar a ética e o bom senso. Um exemplo disso é a utilização do filho para atingir o ex-cônjuge, que traz consequências nefastas ao desenvolvimento infantil. É delas que abordaremos hoje.

A Síndrome da Alienação Parental (SAP) não é um problema novo, embora os estudos tenham se iniciado na década de 80, através das pesquisas de Richard Gardner, professor de Psiquiatria Clínica do Departamento de Psiquiatria Infantil da Universidade de Columbia. Gardner a definiu como uma disfunção que surge no contexto das disputas de guarda, provocada pelo genitor que “programa” intencionalmente o filho para que ele rejeite o ex-cônjuge sem justificativa. O objetivo é fazer com que a criança ou o adolescente desenvolva afetos negativos em relação àquele genitor com quem não convive, causando prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos entre eles após o divórcio.

Especialistas da saúde mental criticam a SAP pelo fato de ela ainda não pertencer aos manuais de transtornos mentais, não sendo até então reconhecida por nenhuma associação profissional e científica por carecer de bases empíricas. De qualquer modo, não se pode negar essa realidade, pois está cada vez mais presente nos processos de guarda e regulamentação de visitas, sendo investigada nas varas de família e da infância e juventude. A prova disso é que foi aprovada no Brasil, em 26 de agosto de 2010, a Lei nº 12.318, que dispõe sobre a alienação parental. Em virtude disso, analisaremos a situação da criança diante da separação litigiosa dos pais, abordando os comportamentos que se enquadram na definição da SAP e a repercussão disso para o desenvolvimento infanto-juvenil.

Comecemos esclarecendo que o protagonista da alienação parental não necessariamente é genitor ou guardião: pode ser aquele que não detém o poder familiar, ou mesmo cuidadores que detém a guarda (avós e tios, por exemplo). Alguns autores, como Silva (2009) [1], destacam que amigos da família e profissionais que circundam a criança (obviamente, não se utilizando da ética no trabalho) também podem se comportar como alienadores, embora isso possa fugir ao conceito original.

Os comportamentos comumente efetuados pelo alienador são: dificultar o acesso do filho ao outro genitor (recusar-se a passar chamadas telefônicas, organizar atividades da criança no dia da visita, interceptar a correspondência do filho – seja ela virtual ou não), desvalorizar e insultar o outro genitor na presença da criança, responsabilizar o não-guardião pelo comportamento inadequado do filho, dentre outros.

Cabe ressaltar que medidas aparentemente inofensivas também constituem alienação parental, como omitir deliberadamente ao outro genitor informações pessoais e compromissos relevantes da criança (festas, consultas médicas, atividades escolares e extra-classe), apresentar o novo relacionamento amoroso aos filhos como “a sua nova mãe” ou “o seu novo pai”, mudar de domicílio sem justificativa e envolver terceiros na campanha difamatória contra o outro genitor.

Não há dúvidas de que tais atitudes provocam consequências negativas ao desenvolvimento infantil, uma vez que a criança tem o direito à convivência com ambos os pais (e famílias extensas), independente da qualidade atual e histórica do relacionamento conjugal. Através dessas condutas, o genitor alienador está fazendo uso de abuso emocional, violência que é silenciosa, mas que traz marcas mais profundas que a agressão física, além de prejudicar vínculos que precisam ser saudáveis para melhor desenvolvimento dos filhos. O alienador utiliza a criança ou o adolescente como instrumento de vingança para uma realidade que ainda não aceitou e se adaptou, não hesitando em usar diversos artifícios para dificultar a relação com o outro genitor. Dentre eles, a mais séria é a acusação de abuso, sobretudo o sexual.

Esse tipo de declaração, quando falsa, é grave não apenas pela eficácia no alcance do objetivo de atingir o outro, mas também pelas consequências emocionais que causa na criança. Ela é convencida da existência dos fatos e induzida a repetir a história nas instâncias judiciárias e nos consultórios médicos e psicológicos. Nesta frequente repetição, a criança passa a acreditar cada vez mais no que é dito, gerando o que chamamos de falsas memórias.

Quando uma pessoa se lembra de eventos que na realidade não ocorreram, seja de forma espontânea ou mesmo por sugestão externa, está fazendo uso de falsas memórias. As espontâneas decorrem de uma distorção interna da memória, através da auto-sugestão. Já as falsas memórias sugeridas surgem através da implantação externa ao sujeito, por meio da sugestão deliberada ou acidental de falsa informação. Resultados de pesquisas recentes [2] indicam que a memória se desenvolve com a idade e que a suscetibilidade à sugestão e à falsificação da memória são maiores em crianças mais jovens, sobretudo as pré-escolares (menores de 7 anos).

Ultrapassando o nível cognitivo, no âmbito comportamental verificamos também o efeito de fortalecimento de uma verbalização calcada em uma falsa memória. Por exemplo, diante de uma sugestão externa de que houve maus tratos à criança por parte do genitor não-guardião, ela pode ecoar essa resposta verbal, tendo reconhecimento e validação por parte sobretudo daquele que detém o poder familiar. Com o passar do tempo – e do fortalecimento desse comportamento através do reforço positivo – pode ocorrer de a criança comportar-se consoante com a falsa memória, apropriando-se do fato, de modo que esse comportamento cada vez mais será fortalecido, pois converge ao interesse do genitor alienador.

Diante da possibilidade de abuso sexual ou outro evento adverso, uma das estratégias para constatação do fato seria entrevistar a suposta vítima o mais próximo possível do evento, já que as crianças apresentam uma melhor qualidade de memória quando testadas imediatamente após o episódio. Cabe destacar que isso nem sempre é possível, uma vez que o tempo de tramitação dos processos judiciais (muitas vezes em ritmo moroso) por si só acomoda o filho na realidade tecida pela alienação, fato, portanto, aliado do próprio alienador.

Outro fato a ser considerado é o contexto aversivo em que se encontra a criança ou adolescente, que favorece o padrão de fuga e esquiva em relação a ambos os pais. Por exemplo, se após as visitas do filho à mãe, o pai faz repetidas perguntas para a criança e faz várias referências negativas a ela, denotando chateação pelo contato estabelecido entre ambos, é possível que, com o passar do tempo, o filho evite se encontrar com a mãe para evitar conflitos com o pai. Pode acontecer também de que, apesar de sentir saudades da genitora, o filho não expresse tal sentimento, pois se assim o fizer, poderá desagradar o genitor com quem ele convive. Ou seja, embora pareça rejeição ao contato materno motivado pela “lealdade” ao genitor guardião, isso na verdade diz respeito a uma operação de esquiva para evitar punições e represálias.

Nesse mesmo contexto, a criança também edita seu comportamento verbal (fala apenas aquela parte da verdade que não será punida), podendo fazer uso de contracontrole (mentiras), com a mesma finalidade de evitar punições. É uma situação extremamente ansiógena para a criança, que pode apresentar uma série de comportamentos que, não raro, se enquadram em um transtorno.

Em médio prazo, os efeitos da alienação parental podem ser: depressão, quadro de estresse, incapacidade de se adaptar aos ambientes sociais, comportamento hostil e agressivo, terrores noturnos, ansiedade excessiva, tendência ao isolamento, consumo de álcool e/ou drogas, apatia, retraimento social e sentimento de culpa. Em um clima de hostilidade entre os genitores desde o colapso do casamento e diante do processo de ruptura dos vínculos afetivos, a criança pode padecer de grande desconforto mental e físico, de modo que os sintomas podem até ser confundidos como consequências de abuso.

Outros efeitos igualmente danosos se referem àqueles que são constatados em longo prazo: além do agravamento dos sintomas supracitados, tem-se também a possibilidade de rompimentos definitivos de vínculos familiares, sentimentos de raiva contra o genitor alienador (quando o filho constata a realidade dos fatos) e sensação de culpa em virtude do tempo de vivência perdido em relação ao outro genitor.

É mister ressaltar também o estresse pelo qual passará a criança ou adolescente ao longo da tramitação judicial, que inclui uma série de eventos aversivos de exposição em exames de corpo de delito, entrevistas periciais e oitiva nos tribunais, tornando ainda mais delicado o processo de guarda e regulamentação de visitas.

Diante desse complexo contexto, algumas discussões adicionais se fazem necessárias. A primeira delas tange à relação entre distúrbios de comportamento e o padrão de relacionamento familiar anterior e posterior ao divórcio. Pesquisas recentes [3] apontaram que a presença de problemas comportamentais na infância não estaria relacionada unicamente à situação do divórcio parental, mas, sim, à sua exposição a conflitos intensos anteriores ao rompimento familiar. Ademais, pode-se inferir que a existência de relações conflituosas antes da separação, no entanto, aumenta a probabilidade de que haja relações conflituosas após o divórcio, sobretudo se pelo menos um dos cônjuges não tiver aceitado e se adaptado à nova condição civil, relacional e afetiva.

Para a detecção da alienação parental, o juiz pode atuar autonomamente ou lançar mão de uma perícia psicológica ou psicossocial. Se for constatada a alienação parental, a Lei nº 12.318 prevê uma série de penalidades, conforme a gravidade do caso: advertência, ampliação do regime de convivência familiar em favor do genitor alienado, multas ao alienador, alteração da guarda, suspensão da autoridade familiar, entre outras.

Com o conhecimento das consequências negativas quando se utiliza de práticas abusadoras e alienadoras, uma reflexão se faz pertinente: é melhor submeter seu filho às frustrações de um relacionamento conjugal, prejudicando seu desenvolvimento biopsicossocial, ou trabalhar seus comportamentos e emoções visando uma melhor adaptação à nova realidade?

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[1] Silva, D.M.P. (2009). Psicologia jurídica no processo civil brasileiro. A interface da psicologia com o direito nas questões de família e infância. Rio de Janeiro: Forense.
[2] Neufeld, C.B.; Stein, L.M. (2003). Falsas memórias em pré-escolares: uma investigação experimental e suas implicações. In M.Z.S. Brandão (Org.). Sobre Comportamento e Cognição: clínica, pesquisa e aplicação, v. 12 (PP. 453-468). Santo André: Editora ESETec Editores Associados.
[3] Benetti (2006), cuja fonte original pode ser conferida aqui
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Juliana de Brito Lima é Psicóloga (CRP 11ª/05027), formada pela Universidade Estadual do Piauí e especializanda em Análise Comportamental Clínica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento – IBAC. É membro da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental – ABPMC e Psicóloga do Centro Integrado de Educação Especial – CIES e da Clínica Lecy Portela, em Teresina-PI. Tem experiências acadêmicas (linha de pesquisa “Desenvolvimento da criança e do adolescente em situações adversas” do Núcleo de Análise do Comportamento da Universidade Federal do Paraná/ NAC-UFPR) e profissionais na área clínica (atendimento a criança, adolescente e adulto), jurídica e educação especial, na orientação de pais.
Fonte: Instituto de Psicologia Aplicada - InPA
Telefone - (61) 3242-1153

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