Pequenos Rebeldes


É comum que crianças pequenas façam birra; algumas, no entanto, são propensas a crises mais violentas. Em certos casos, o acompanhamento profissional pode ajudar a evitar a agressividade crônica.
Isabela tem acessos de raiva no supermercado sempre que a mãe se recusa a comprar algo que ela quer. A pequena Beatriz berra ferozmente quando a mãe interrompe sua brincadeira para que tome banho ou mude de roupa. Vinícius, um adorável ruivo de pouco mais de 17 meses, morde móveis e brinquedos assim que alguém lhe diz “não”. Nesses momentos, parece inútil conversar com os pequenos de forma racional. Ameaças e punições também não detêm os gritos, a agitação e as agressões. Mas as cenas terminam de forma tão rápida como começaram e a própria criança, em geral, se aconchega junto aos adultos em busca de carinho. Em situações como essas é comum que os pais se sintam impotentes para controlar as crises.
Os acessos de mau humor são comuns em crianças que têm entre 15 e 18 meses. Na maioria dos casos, refletem apenas um estágio de desenvolvimento em que independência e vontade própria se chocam com imaturidade emocional e verbal. “Acessos de fúria fazem parte do desenvolvimento da criança”, diz o psiquiatra e terapeuta de família Manfred Cierpka, da Universidade de Heidelberg, Alemanha.

Os pais devem se preocupar apenas quando esses ataques de raiva ocorrem mais de cinco vezes por dia, sendo extremamente difícil acalmá-los. Durante esses acessos, os pequenos rebeldes podem destruir objetos ou se mostrar agressivos com adultos e outras crianças e, até se machucar ocasionalmente, arranhando-se até a pele sangrar ou batendo a cabeça contra a parede.

Ataques de fúria freqüentes, assim como manifestações autodestrutivas, merecem atenção profissional. Além de emocionalmente extenuantes para pais e filhos, podem ser indício de problemas psiquiátricos e de comportamento, como depressão e propensão para violência. A conduta pode ter origem em fatores genéticos, socioeconômicos ou ser conseqüência de negligência durante a gravidez, pelo fato de a mãe ter fumado, por exemplo, ou ainda pela forma como a criança é tratada pelas pessoas que cuidam dela. Os estudos mostram que adultos mais autoritários e menos flexíveis em suas atitudes tendem a estimular a agressividade nos filhos.

Contrariamente à idéia convencional de que violência se aprende durante a adolescência, pesquisas recentes mostram que comportamento agressivo, mesmo antes dos 2 anos, pode sinalizar problemas persistentes. Por isso, cada vez mais especialistas enfatizam a importância de evitar expor a criança a experiências dolorosas, principalmente durante os primeiros anos de vida. Infligir violência física aos pequenos pode causar a eles graves problemas psicológicos para toda a vida.

DESEJO DE INDEPENDÊNCIA

O fato é que – embora frustrantes e desagradáveis –, as explosões de raiva de crianças pequenas geralmente são controláveis. Elas expressam emoções que emergem de um cérebro imaturo. Os pais de Sara, de 2 anos e meio, estavam preocupados porque a filha gritava na creche quando a professora intervinha em brigas por brinquedos. “Em casa não conseguimos acalmá-la”, diz a mãe.

Quando os pais de Sara foram fazer uma consulta com Cierpka, no Instituto de Pesquisa Cooperativa Psicossomática e Terapia de Família, o psiquiatra viu poucos motivos para grandes preocupações. Depois de se entreter sem incidentes por mais de uma hora, a menina começou a brincar com a bolsa da mãe, que a arrancou das mãos de Sara. A garota pareceu perplexa e tentou pegar novamente o objeto. A mãe se apoderou da bolsa uma segunda vez dizendo: “O que é isto, Sara? Precisa realmente fazer isto, agora?”. Só então a criança começou a berrar.

Este comportamento é bem característico dessa fase. “Crianças na etapa dos ataques de raiva estão dando um salto gigantesco de desenvolvimento”, diz Cierpka. Não apenas as aptidões motoras estão aumentando rapidamente, permitindo que atuem com independência para explorar o ambiente ao redor, mas também, por volta dos 30 meses, começam a se perceber como indivíduos; como se, subitamente se reconhecessem em um espelho. “Essa percepção permite que uma criança tenha desejos independentes e entenda que suas ações provocam respostas de outros”, diz Cierpka.

O impulso de experimentação, combinado com a consciência das reações de outras pessoas, é uma receita freqüente para angústia, à medida que as explorações e desejos de uma criança pequena muitas vezes incitam “nãos” dos pais e daqueles que cuidam dela. Os adultos geralmente não deixam, por exemplo, que seus filhos comam biscoitos antes do jantar, peguem facas ou brinquem com a carteira de dinheiro da mãe.

Essas proibições provocam decepção e fúria – sentimentos negativos que são inteiramente novos para a criança. Sara, por exemplo, sente raiva com o fato de a bolsa ter sido arrebatada e decepção porque não pode fazer nada a respeito. “Todas essas emoções são extremamente fortes, difíceis de ser assimiladas pelos bebês”, ressalta Cierpka. Incapazes de expressar seus sentimentos com palavras, as crianças pequenas os descarregam com gritos irracionais e um frenesi físico, traduzido em ataques de raiva.

O conselho de Cierpka aos pais: reconheça os sentimentos de seu filho. Por exemplo, a mãe de Sara poderia ter dito calmamente à filha: “Sei que você está com raiva por causa da bolsa, mas ela não é para brincar”. Então, poderia distrair a filha – digamos, tirando um brinquedo da bolsa. Ou, se o pai quisesse interromper uma brincadeira para que a família saísse, poderia se oferecer para brincar com ela depois que voltassem para casa. Tais estratégias permitem que uma criança, como Sara, saiba que os pais estão do lado dela mesmo que ela esteja com raiva, o que acabará possibilitando reações mais elaboradas à angústia.

AGRESSIVIDADE CRESCENTE

Os ataques de irritação podem se tornar mais acentuados em crianças voluntariosas, que tendem a agir e pensar com maior independência que seus pares. Durante uma consulta com Cierpka, Vinícius chorou e berrou sem provocação, sacudiu a perna de uma mesa e a mordeu – uma atuação bem mais exagerada que a de Sara.

Em alguns casos, mais que um fenômeno passageiro, comportamentos excepcionalmente agressivos durante a infância podem ser sinal de problemas persistentes. Uma revisão da literatura, publicada em 1995 pela psicóloga Susan B. Campbell, da Universidade de Pittsburgh, sugere que crianças com problemas de comportamento aos 3 ou 4 anos têm cerca de 50% de possibilidade de apresentar problemas semelhantes no início da adolescência.

Nesses casos, agressão física é o principal motivo de preocupação. Para a maioria dos meninos – bem mais propensos à violência que as meninas –, socos, chutes e mordidas parecem atingir o auge no jardim-de-infância, e depois declinam entre 6 e 15 anos de idade. Em cerca de 4% dos meninos, esse comportamento persiste e eles são mais propensos a serem violentos aos 17.

Ataques extremos de raiva podem, em alguns casos, ser um sinal de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Em um estudo de 2007, os psicólogos Manfred Laucht, do Instituto Central de Saúde Mental de Mannheim, e Gunter Esser, da Universidade de Potsdam, ambos da Alemanha, estudaram os perfis de desenvolvimento e de comportamento, aos 2 anos, de 26 crianças do curso elementar que apresentavam transtornos semelhantes aos do TDAH. Eles os compararam aos perfis de 241 meninos e meninas saudáveis do primeiro grau, e constataram que os indicadores potenciais de TDAH incluíam agitação, irritabilidade e dificuldade em entender linguagem. Portanto, crianças pequenas que têm ataques de raiva violentos podem ser mais propensos a esses problemas de comportamento.

Genética e ambiente são fatores importantes para a formação do temperamento de cada pessoa. Em particular, aspectos genéticos respondem por mais da metade da variação entre as crianças no tocante à freqüência com que usam agressão física. A psicóloga Ginette Dionne e colegas da Universidade Laval, Québec, avaliaram os níveis de agressão em 562 gêmeos aos 19 meses. Em 2003, os pesquisadores relataram que 60% dos gêmeos idênticos estudados tinham esse traço em comum, enquanto apenas 28% dos gêmeos fraternos, que compartilham metade do genoma, eram semelhantes nos níveis de beligerância.

Atrasos na linguagem também podem intensificar a predisposição genética para comportamento disruptivo e agressivo. Estudos epidemiológicos mostram que entre 60% e 80% das crianças em idade pré-escolar e escolar, cuja fala se desenvolveu lentamente, exibem tais comportamentos, em comparação com 20% na população geral. Dionne- e colegas, que estimaram as aptidões de linguagem dos gêmeos em seu estudo, porém não encontraram associação forte entre linguagem e agressão por volta de um ano e meio de idade. Em muitos casos, a agressão surge antes de quaisquer problemas com a linguagem, sugerindo que um atraso na linguagem não causa, mas aumenta a agressão: as crianças podem ficar frustradas com a incapacidade de se comunicar, ou usar os punhos quando não conseguem produzir as palavras certas.

INFLUÊNCIA DOS PAIS

O comportamento parental, começando no útero, pode ter um efeito significativo no temperamento de uma criança. Em um estudo publicado este ano, o psicólogo Richard Tremblay, da Universidade de Montreal, relatou que o tabagismo pesado (10 ou mais cigarros por dia) por parte da mãe durante a gravidez estava associado com agressão em 1.745 crianças nascidas em Québec, com idades entre 17 e 42 meses. Cientistas acreditam que o tabagismo perturba o desenvolvimento cerebral do feto.

Os psicólogos também estão convencidos de que a conduta dos pais influencia a estabilidade emocional dos filhos. Adultos que deixam uma criança angustiada fazer o que quiser ou que reagem de maneira autoritária estão procurando encrenca. As reações dos pequenos às regras negligentes ou draconianas costumam ser agitação, rebeldia e, em alguns casos mais raros, apatia.

Um estudo de 2008 com 1.508 crianças de escola elementar, realizado pela psicóloga clínica Mireille Joussemet, da Universidade de Montreal, corrobora a ligação entre agressão e comportamento controlador por parte das figuras parentais. Pais e mães autoritários gostam de exercer poder, dão valor à obediência e não incentivam o filho a expressar suas próprias opiniões. O estudo encontrou os fatores de risco habituais para comportamento agressivo (julgado, neste caso, pelos professores): ser do sexo masculino, ter temperamento reativo e problemas familiares, como pais instáveis, em constante pé de guerra. Mas, além destes fatores contribuintes, os pesquisadores descobriram que ter uma mãe controladora elevava ainda mais as chances de comportamentos agressivos (TDA/H) no ensino fundamental.

Em um estudo feito em 1996 com 69 famílias que criavam primeiros-filhos do sexo masculino, o psicólogo Jay Belsky, da Universidade de Londres, observou que os pais com maior dificuldade em controlar o comportamento dos filhos nas idades entre 15 e 21 meses eram os que davam ordens sem qualquer explicação. Eles não se preocupavam em dizer, por exemplo: “Não mexa nessa faca porque ela pode machucá-lo”. Pais que promovem diretrizes e democracia numa família têm maior probabilidade de ter filhos bem ajustados, acreditam os psicólogos.

Os fatores socioeconômicos e familiares também devem ser considerados. No estudo sobre o fumo, de 2008, por exemplo, os efeitos do tabagismo sobre a agressividade eram maiores se a família tivesse uma baixa renda ou a mãe apresentasse uma história de comportamento anti-social. E o estudo de Belsky, de 1996, concluiu que nas famílias consideradas problemáticas era maior o número de pais desajustados. Uma personalidade hostil pode, afinal de contas, “equipar” mal uma pessoa para lidar com sentimentos de frustração.

Além disto, conflitos conjugais contribuíam negativamente. Em particular, a dificuldade parecia florescer quando um dos pais expressava emoção negativa e, ao mesmo tempo, minava o papel parental do cônjuge – como interromper o outro ou dar instruções conflitantes ao filho. Em geral, a qualidade conjugal, contudo, não se revelou um fator importante nesse estudo.

No caso de Vinícius, Cierpka especula que problemas conjugais podem estar, em parte, na raiz dos seus ataques de raiva. O pai do menino é uma presença inconstante: sai de casa sem aviso prévio por longos períodos e não informa à esposa onde está nem o que está fazendo, o que a deixa magoada e ansiosa. Sem perceber o que faz, a mãe transmite a própria raiva e insegurança ao filho, cujos acessos de raiva podem representar um pedido desesperado de atenção, de que ele precisa para aliviar sua própria insegurança.

Cierpka também percebe um problema mais superficial: assim que Vinícius se irrita, a mãe o puxa até ela para consolá-lo. Essa ação tende a reforçar a conexão entre agitação hostil e amor. Cierpka aconselha a mãe a consolar o filho somente depois que ele tiver começado a se acalmar, recompensando-o por recuperar o equilíbrio.

PREVENÇÃO POSSÍVEL

Já que agressividade precoce pode ser um indício de violência futura, atividades que abrandam e previnem ações hostis em tenra idade podem ajudar a restringir o número de jovens que se tornam violentos. Embora nenhum programa pré-escolar tenha comprovado sua eficácia nesse sentido, estudos experimentais de prevenção sugerem o que poderia funcionar. Uma intervenção denominada “programa pré-escolar de Perry”, que se concentrou em impulsionar o desenvolvimento afetivo e cognitivo de crianças de baixa renda, com idades entre 3 e 4 anos nos Estados Unidos, reduziu significativamente o comportamento criminal nos homens.

Outra abordagem promissora poderia ser a exploração da ligação entre atraso na linguagem e a agressão, tendo como alvo as crianças que exibem o déficit e trabalhar com elas para superá-lo. Isso pode ser feito por meio de estimulação verbal intensa e também com acompanhamento psicoterápico para que tenham a chance de lidar com a própria frustração de forma menos destrutiva. Além disso, é possível ensinar às crianças práticas sociais, como ser prestativo, consolar os outros, partilhar e encontrar meios alternativos de reconhecer a própria raiva. Nos casos em que atitude parental autoritária se manifestar, uma psicoterapia dirigida pode ajudar a quebrar o ciclo de comportamento agressivo-opositivo na criança e a punição infligida pelos pais.

Pesquisas mostraram que pelo menos um gene influencia a agressão nos seres humanos. Homens que sofreram maus-tratos quando crianças tiveram probabilidade maior de serem condenados por um crime violento antes dos 27 anos, se possuíssem uma forma mais curta do gene para uma enzima chamada monoaminooxidase A. No futuro, à medida que os pesquisadores tiverem mais conhecimento genético sobre comportamento agressivo, esses achados moleculares poderão levar a medicamentos que poderão ser associados com ações comportamentais para combater tendências violentas em jovens.(Tradução de Vera Paula de Assis)

CONCEITOS-CHAVE

- Ataques de raiva ocasionais são normais nas crianças durante os primeiros três anos de vida, à medida que independência crescente se choca com imaturidade emocional e verbal.

- Acessos de fúria freqüentes, associados a atitudes autodestrutivas, como bater a cabeça ou arranhar-se, revelam indícios de comportamentos mais graves, incluindo propensão para a violência.

- Fatores genéticos são um dos motivos que desencadeiam agressividade infantil. As outras causas estudadas são o tabagismo durante a gravidez, atraso na linguagem, condição socioeconômica e certos estilos parentais. Ações preventivas com programas já na pré-escola podem reduzir o número de jovens que se tornam cronicamente violentos.

PARA CONHECER MAIS
A linguagem e o pensamento da criança. Jean Piaget. Martins Fontes, 1999.
Behavioural outcome of regulatory problems in infancy. J.-O. Larsson em Acta Pæediatrica, vol. 93, nº 11, págs. 1421-1423, 2004.
Controlling parenting and physical aggression during elementary school. Mireille Joussemet et al. em Child Development, vol. 79, no 2, págs. 411-425, de 2008.
Understanding development and prevention of chronic physical aggression: towards experimental epigenetic studies. Richard E. Tremblay em Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, vol. 363, nº 1503, págs. 2613-2622, 2008.

Fonte Revista Mente e Cérebro