Agenda cheia,
reprovação dos pais, conflitos na escola. Pesquisas na área de neurociência e
comportamento mostram como a exposição a fatores estressantes compromete o
desenvolvimento das crianças e o que fazer para evitar danos futuros
Natação,
inglês, equitação, tênis, futebol. É cada vez mais comum encontrar crianças que
mal saíram da pré-escola e já cumprem agendas de “miniexecutivo”, com
compromissos que se estendem ao longo do dia. A intenção dos pais ao submeter
os filhos a essas rotinas é torná-los adultos superpreparados para o
competitivo mundo moderno. O preço que se paga por tanto esforço, porém, pode
ser alto. Ainda pequenas, essas crianças passam a apresentar um problema de gente
grande, o estresse. “É uma troca que não vale a pena”, afirma o psicoterapeuta
João Figueiró, um dos fundadores do Instituto Zero a Seis, instituição
especializada na atenção à primeira infância. “Frequentemente essa rotina impõe
à criança um sentimento de incompetência, pois lhe são atribuídas tarefas para
as quais ela não está neurologicamente capacitada.” Como uma bomba-relógio
prestes a explodir, o estresse infantil tem ganhado status de problema de saúde
pública. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Academia Americana de Pediatria
publicou, em dezembro, novas diretrizes para ajudar os médicos a identificar e
tratar esse mal. O risco dessa exposição, alertam os cientistas, são danos que
vão bem além da infância, como a propensão a doenças coronarianas, diabetes,
uso de drogas e depressão.
Dos poucos
estudos brasileiros sobre estresse infantil, se destaca um levantamento
realizado pela pesquisadora Ana Maria Rossi, presidente da International Stress
Management Association no Brasil (Isma-BR). A pesquisa, feita com 220 crianças
entre 7 e 12 anos nas cidades de Porto Alegre e São Paulo, revelou que oito a
cada dez casos em que os pais buscam ajuda profissional para seus filhos por
causa de alterações de comportamento têm sua origem no estresse. “O estresse é
uma reação natural do nosso corpo, o problema é esse estímulo atingir níveis
muitos altos ou se prolongar por longos períodos”, diz Ana Maria.
Para ajudar
pais e profissionais de saúde a identificar quando há risco, cientistas do
Centro de Desenvolvimento da Criança da Universidade de Harvard, nos Estados
Unidos, propuseram uma divisão: o estresse positivo, aquele em que há pouca
elevação dos hormônios e por pouco tempo; o tolerável, caracterizado pela
reação temporária e que pode ser contornada quando a criança recebe ajuda; e o
tóxico, o que deve ser combatido, ligado à estimulação prolongada do organismo,
sem que a criança tenha alguém que a ajude a lidar com a situação. “A origem
pode estar em episódios corriqueiros que gerem frustração ou aflição
frequentemente, como brigas na escola ou com familiares, ou em situações
únicas, mas com impacto muito grande, como a morte inesperada de alguém
próximo, abuso sexual ou acidente”, esclarece Christian Kristensen, coordenador
do programa de pós-graduação em psicologia da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Quando exposto a quantidades muito grandes dos
hormônios do estresse, o organismo sofre uma espécie de intoxicação. Cai a
imunidade, deixando a pessoa mais exposta a infecções, há uma interferência nos
hormônios do crescimento e até mesmo o amadurecimento de partes essenciais do
cérebro, como o córtex pré-frontal, é afetado. “Essa região é responsável pelo
controle das funções cognitivas, como a capacidade de moderar a impulsividade e
a tomada de decisões”, explica o neurocientista Antônio Pereira, do Instituto
do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
SINAIS Uma professora alertou Liliana para a dificuldade do filho Rafael em ler os enunciados. No médico, descobriu-se o porquê: o garoto tem ansiedade e déficit de atenção |
Mas o que tem
tirado as crianças do eixo tão prematuramente? No estudo realizado pelo
Isma-BR, em primeiro lugar aparecem a crítica e a desaprovação dos pais,
seguidas pelo excesso de atividades, o bullying e os conflitos familiares. Esse
último fator mereceu atenção especial em uma pesquisa realizada na Universidade
de Rochester, nos Estados Unidos. E o resultado comprovou uma suspeita antiga.
“Em nosso estudo demonstramos que o ambiente estressante está associado à
ocorrência mais frequente de doenças nas crianças”, disse à ISTOÉ a pediatra
Mary Caserta, coordenadora do trabalho, que envolveu 169 crianças entre 5 e 10
anos. Muitas vezes, os pais nem desconfiam que a enfermidade do filho pode ter
raízes no estresse. “Passa tão batido que às vezes a criança é medicada de modo
errado”, diz Marilda Lipp, diretora do Centro Psicológico de Controle do Stress
e professora da PUC-Campinas. Encontrar reações físicas intensas, mas sem
nenhuma doença de fundo não é mais novidade para os médicos. “Cefaleias e dores
abdominais causadas por estresse são as queixas mais comuns”, diz Ricardo
Halpern, presidente do departamento de comportamento e desenvolvimento da
Sociedade Brasileira de Pediatria.
Outro perfil
que se tornou comum nos consultórios é o da criança estressada pela
superproteção dos pais. São os “reizinhos mandões”, como apelidou a
psicopedagoga Edith Rubinstein. “Esses meninos e meninas têm muita voz dentro
de casa e dificuldade de lidar com o esforço”, diz a especialista. Não deixar a
criança aprender a contornar situações difíceis é extremamente prejudicial.
Isso porque uma característica importante para evitar os quadros de estresse
tóxico é justamente a resiliência – a capacidade de a pessoa se adaptar e sair
de situações adversas. “Quando a criança é sempre tirada pelos pais do apuro,
ela não desenvolve essa habilidade e se torna mais suscetível ao estresse”, diz
a psicanalista infantil Ana Olmos.
Com a evolução
científica, o que se tem constatado é que não só no comportamento as reações ao
estresse são distintas. Estudando um grupo de 210 crianças de 2 anos,
pesquisadores da Universidade de Rochester, nos Estados Unidos, notaram que
comportamentos diferentes estão associados a níveis distintos de cortisol no
sangue. Os pequenos voluntários foram divididos em dois grupos: as “pombas”
(crianças cautelosas e dóceis) ou os “falcões” (atrevidas e assertivas).
Enquanto as “pombas” apresentavam uma elevação abrupta na quantidade de
cortisol circulando na corrente sanguínea quando expostas a situações
estressantes, nos “falcões” a concentração desse hormônio permanecia
praticamente inalterada. E isso trazia consequências diversas para os dois
grupos: “pombas” demonstraram mais chances de desenvolver depressão e
ansiedade. Já os “falcões” estavam mais suscetíveis a comportamentos de risco,
hiperatividade e déficit de atenção. “É importante reconhecer essas diferenças
para intervir”, disse à ISTOÉ Melissa Sturge-Apple, coautora da pesquisa.
MÉTODO Edmara de Lima coordena os professores e funcionários da Prima Escola Montessori para diagnosticar as mudanças emocionais dos alunos |
“O estresse é
um fator de risco importante para a grande maioria das doenças mentais”, diz
Guilherme Polanczyk, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo.
“E seu efeito sobre o organismo é bem maior em sistemas menos maduros, como o
das crianças.” Prova disso foram os dados apresentados por pesquisadores da
Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. A exposição à violência, ainda
que moderada, foi capaz de gerar modificações no comportamento em 90% das 160
crianças entre 4 e 6 anos analisadas no estudo. As principais alterações eram
pesadelos, voltar a fazer xixi na cama e a chupar o dedo. Em um terço dos
pequenos voluntários, a consequência foi mais grave: ocorreram crises de asma,
alergias e déficit de atenção ou hiperatividade. E 20% deles desenvolveram
transtorno do estresse pós-traumático. “Quanto mais estresse na infância, maior
a chance de se ter alterações físicas e psicológicas quando adulto”, disse à
ISTOÉ Sandra Graham-Bermann, autora da pesquisa.
Foi após dois
eventos estressores que a menina R., 14 anos, desenvolveu o transtorno
obsessivo compulsivo (TOC). Na mesma semana, em 2009, ela viu o som do carro da
mãe ser roubado e o pai escapar, por pouco, da tragédia no voo 3054 da TAM (que
se chocou contra um hangar do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, matando
todos a bordo). Depois dos sustos, começou a manifestar manias de repetição. “O
ritual de repetição me deixa muito ansiosa e me abate muito”, diz a menina.
“Para os pacientes de TOC, a própria doença é considerada estresse crônico”,
avalia o psiquiatra Eduardo Aliende Perin, membro do Consórcio Brasileiro de
Pesquisa em TOC.
RECOMEÇO Em Realengo, o desafio é apagar da memória de alunos, funcionários e pais a experiência negativa de ver estudantes mortos dentro da sala de aula |
Estresse e transtornos mentais também vêm juntos quando falta diagnóstico. Foi o que ocorreu com o psiquiatra Jorge Simeão, 38 anos. Sem saber o que tinha, ele sofreu durante toda a sua adolescência e juventude. Muitos o consideravam um rapaz distraído, que não se preocupava com os outros. Foi preciso se formar na faculdade como médico psiquiatra para Simeão finalmente descobrir que os traços de comportamento que o acompanhavam não eram uma falha de caráter, mas uma alteração no funcionamento do seu cérebro. Ele tem transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). “O esforço que precisava fazer para me concentrar e a falta de compreensão de colegas me geraram uma tensão muito forte, a vida toda.” Histórias como a de Simeão são bem mais comuns do que se imagina. Pelos cálculos da Organização Mundial da Saúde, uma em cada cinco crianças tem alguma desordem psiquiátrica e a grande maioria leva anos até receber o diagnóstico. A mais comum, de acordo com pesquisas do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, é a ansiedade, presente em 8% dos meninos e meninas abaixo dos 18 anos. Em seguida, aparecem a depressão (7,8%), os distúrbios de conduta (5,6%) e o TDAH (5%).
ATENÇÃO Várias crianças atendidas pelo psiquiatra Guilherme Polanczyk apresentam estresse como sintoma de um transtorno mais grave |
Ainda há
poucas ações voltadas para a saúde mental infantil, mas algumas já demonstram
bons resultados. Edmara de Lima, coordenadora pedagógica da Prima Escola
Montessori, em São Paulo, orienta uma dessas. “Observamos as crianças sob três
ângulos: primeiro analisamos o corpo, se ela enxerga e fala bem e se está com
os hormônios em níveis adequados. Depois analisamos a inteligência, se está
adequada à idade. Por último vemos as questões emocionais.” No Rio, o
neurologista do comportamento Alexandre Ghelman ajusta os últimos detalhes para
iniciar, no próximo semestre, um trabalho com alunos do terceiro ano do ensino
médio para evitar a tensão, em especial a gerada pelo vestibular. “Vamos
ensinar-lhes técnicas para que lidem melhor com as situações estressantes”, diz
Ghelman. Entre as lições, os jovens vão aprender como identificar o que os tira
do sério, quais são os sentimentos que os dominam nessa hora e como relaxar
diante dos fatores estressores. A escola tem mesmo muito que contribuir. Foi
graças ao alerta de uma professora que a editora gráfica Liliana Franco, 48
anos, levou o filho Rafael, então com sete anos, ao médico. “Ela me disse que
ele estava lendo só a primeira linha dos enunciados das perguntas antes de
responder às questões”, afirma Liliana. No psiquiatra, se descobriu que Rafael
tem TDAH e ansiedade. Com o treino cognitivo-comportamental e o tratamento
medicamentoso, porém, o garoto, hoje com 15 anos, conseguiu reverter vários
sintomas e se prepara para prestar vestibular.
Nem todos,
porém, têm a sorte de receber um diagnóstico precoce. Daí advêm as
complicações. “Podemos fazer um paralelo entre os transtornos mentais e a
diabete. Em ambos, você não vai curar a pessoa, mas quanto mais cedo é a
intervenção, maiores as chances de reduzir seus impactos”, avalia o psiquiatra
Christian Kieling. “A lacuna entre quem tem algum transtorno mental e aqueles
que recebem o atendimento especializado é muito grande”, avalia Dévora Kestel,
assessora regional de Saúde Mental da Organização Panamericana de Saúde (Opas).
No Brasil, o governo federal planeja os primeiros passos. “Estamos começando a
pensar uma política integrada entre os ministérios para cuidar da saúde mental
na infância”, informou Paulo Bonilho, coordenador nacional de Saúde da Criança
do Ministério da Saúde. Medida mais que necessária para desarmar a
bomba-relógio do estresse infantil.
Massacre
traumático
Até um ano
atrás, um estudante armado invadir um colégio e atirar contra seus colegas era
algo distante do imaginário brasileiro. A cena era usualmente associada a
alguma tragédia americana – país que concentra 70% de ataques desse tipo. Desde
7 de abril de 2011, porém, o Brasil passou a integrar essa estatística.
Wellington de Oliveira, ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, em
Realengo, invadiu o colégio e disparou contra alunos e funcionários, deixando
12 mortos. “É preciso atenção após tragédias, pois elas são importantes
gatilhos para os transtornos mentais, em especial o do estresse
pós-traumático”, avalia Fábio Barbirato, chefe do setor de psiquiatria da
infância e adolescência da Santa Casa do Rio. Por isso, desde o massacre há um
esforço coletivo para apagar essas marcas. No atendimento psicológico, que se
iniciou no dia seguinte ao incidente, já passaram 90 crianças e 100 adultos.
Cerca de metade deles segue em tratamento. Caíque, um menino de 3 anos que
perdeu a tia Jéssika Guedes no massacre, ficou durante muito tempo perguntando
quando a jovem voltaria para a casa. “Ele perguntava para quem ia à escola se Jéssika
estava lá.” Com apoio psicológico, está aos poucos assimilando que a tia não
voltará mais. Como ele, várias crianças e famílias ainda sofrem com a tragédia.
“Pode demorar anos para esses efeitos negativos serem contornados”, disse à
ISTOÉ o psiquiatra Timothy Brewerton, um dos responsáveis pelo atendimento às
vítimas do massacre de Columbine, ocorrido em uma escola americana em 1999.
Para ele, à medida que se aproxima o marco de um ano da tragédia, é preciso
mais cuidado. “A efeméride é uma espécie de gatilho para novas reações
emocionais.”
Por: Rachel Costa
Fonte: Isto é
Nenhum comentário:
Postar um comentário